Ainda há pastores?



A Reportagem de Pedro Coelho e Jorge Pelicano em 04/02/07 na Sic, "Ainda há pastores?" deixou-me literalmente perplexa... um exemplo de realidade crua do meio rural.

Como é possível que estas coisas ainda aconteçam? Mas acontecem de facto.

Rosa tem 16 anos acabados de fazer. Vive na Serra da Estrela, num dos Casais de Folgosinho, numa velha quinta arrendada pelo pai. O Casal da Maceira fica a 40 minutos, de jipe, de Folgosinho, uma pequena vila do concelho de Gouveia.

Rosa andou na escola de Folgosinho até aos 14 anos. Fez os 4 anos do primeiro ciclo em 8. Assim que completou a antiga quarta classe, os pais fizeram-na regressar ao vale da serra, transformando-a na principal, por ser a única, ajudante da família.

Os 8 anos de Rosa na escola foram, por isso, algo estratégicos. Tacitamente ter-se-á prolongado o tempo de permanência em nome da continuidade da ligação à escola.
Os pais, pela voz da mãe, há muito que definiram um princípio: "Se o mais velho (Raul de 32 anos) não quis continuar a estudar depois da quarta classe, os outros (Sandra, em parte incerta e com cerca de 20 anos, Rosa 16, Zé a completar 14 e a escassos 5 meses de deixar para sempre a escola) também não hão-de continuar".

Definido o princípio, os filhos de Maria e de Manuel, puderam, portanto, completar o primeiro ciclo, por ser em Folgosinho, mas não tiveram ordem de passar para o segundo ciclo, em Gouveia.

Sandra conformou-se, encontrando outras formas de matar o tempo; Zé conformar-se-á, uma vez que o silêncio apático que lhe molda a personalidade não o irá deixar mover montanhas para perseguir um sonho; Rosa, menina do alto da serra, brava como as pedras, esforça-se por destruir o edifício de argumentos erguido pelos pais.

Há semanas fugiu do casal de bicicleta e passou uns dias em Folgosinho, numa casa que os pais construíram na terra a pensar na velhice. Escassos dias antes dos 16 anos, apanhou boleia no táxi, que, diariamente, transporta o irmão para a escola de Folgosinho, e foi a Gouveia, falar com a presidente do Conselho Executivo da escola. Pediu-lhe para ser aceite. A professora abriu-lhe as portas mas disse-lhe que só a poderia matricular se os pais acedessem. Falou com o pai, habitualmente mais aberto do que a mãe. Ouviu um não. A única palavra que, sobre esse assunto, a mãe diariamente lhe despeja na cara.

Rosa passa os dias a pensar na escola. Tem corpo e idade para pensar em rapazes. Aos estranhos só fala de rapazes.

A assistente social da Câmara Municipal de Gouveia, que fora uma vez ao Casal tentar convencer os pais a deixarem-na regressar à escola, voltou agora, curiosamente na semana que a SIC passou nos vales da serra. Ouviu, outra vez, o não de Maria.

Rosa ouve música. Passa horas ao telemóvel buscando uma rede inexistente, escrevendo mensagens que nunca envia. Sonha com o príncipe encantado que a leve para lá das muralhas da serra.

Tanto sonha que desespera.
É pastora de cabras; pastora de ovelhas; guia uma junta de bois; colhe o feno, o centeio e as batatas. Está farta da serra, imune à beleza que a paisagem transpira. Há um ano arranjou um confidente. Chama-se "pantufa". O único que, pela ausência de resposta, lhe alimenta a dúvida: "Será que, algum dia, conseguirei sair daqui?" Pantufa diz "ão", o que é mais de metade de um não.

Rosa não se revê na vida que leva. Espero que consiga partir as amarras que a prendem, que seja sempre temerária, e que consiga dobrar a casmurrice dos pais. Afinal, Rosa é uma menina como tantas outras que tem o direito a frequentar o ensino público, mas que por opção dos pais, não pode.
Pedro Coelho - jornalista-

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente post. História triste e revoltante.